Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas
avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de
açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas
bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e
espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa
vãs!
E
ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a
serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão
resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta
cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro
enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No
entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se
desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos
nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais
dançar!..."
E
ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a
serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as
sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E
ri-se Satanás!...
V
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor
Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó
mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este
borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das
imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que
o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a
estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice
fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa
libérrima, audaz!...
São
os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo
aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com
os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes,
bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .
São
mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas,
alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios
passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como
Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.
Lá
nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças
lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a
virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do
monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...
Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no
horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a
sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais
s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a
areia
Acha um corpo que roer.
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido
à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro,
fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o
sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao
mar...
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo
de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma
corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E
assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute...
Irrisão!...
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu
deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por
que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este
borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei
os mares, tufão! ...